14 Abril 2023
“Nem tudo anda nos trilhos e as polêmicas não aconteceram e acontecem apenas na China, mas principalmente no Atlântico Norte. Mas há uma diferença, e não é pequena. O debate na China é doméstico sobre relações internacionais. O mal-estar no Atlântico Norte reside no fato de cientistas políticos e filósofos chineses ousarem questionar a hegemonia da ordem mundial, já consagrada há dois séculos e meio. Portanto, os movimentos de Xi Jinping, acompanhados por Vladimir Putin, não pretendem ser desafios ao Ocidente, mas autodefesa e autodeterminação. O confronto da OTAN com a Rússia na Ucrânia, e o avanço da OTAN e dos Estados Unidos em direção a Taiwan, são movimentos para proteger o unilateralismo ‘ameaçado’ pela multipolaridade”. A análise é de Walter Mignolo, semiólogo argentino e professor de literatura na Universidade de Duke, nos Estados Unidos, em artigo publicado por Página/12, 07-04-2023. A tradução é do Cepat.
A visita do Presidente Xi Jinping a Moscou, a primeira depois de ter sido reeleito duas vezes para presidente da República Popular da China, foi um acontecimento orquestrado e decisivo na mutação da ordem mundial unipolar para uma ordem multipolar. Os movimentos do “Ocidente coletivo”– o Atlântico Norte – para, senão impedir, pelo menos arruinar a visita, foram óbvios. O movimento mais notório foi a decisão do Tribunal Penal Internacional de emitir um mandado de prisão contra Vladimir Putin por crimes de guerra. A ordem foi expedida em 17 de março. A reunião de Xi Jinping com seu homólogo russo, Putin, começou no dia 20 de março.
Nesse dia, os jornais da Europa e dos Estados Unidos relembraram a invasão unilateral do Iraque, que tanto a China como a Rússia contestaram no Conselho de Segurança das Nações Unidas, liderada por dois mosqueteiros e um “convidado de pedra”: George W. Bush, Tony Blair e José María Aznar. Houve consenso na imprensa internacional, consignando o que já se sabia, mas que é preciso relembrar. A invasão foi uma violação do direito internacional legitimada por uma ficção: a posse de armas de destruição em massa.
O encontro de Xi Jinping com Putin, no 20º aniversário da invasão do Iraque, não foi acidental. Não apenas isso, mas ao marcar a visita para esse dia, tendo anunciado antecipadamente que um dos pontos da agenda era a solução para a crise na Ucrânia, sugeria a quem quisesse ver que a condenação do Ocidente à invasão russa da Ucrânia era outra das muitas manifestações de uso de dois pesos e duas medidas: quem tem o direito de invadir e violar a soberania nacional e quem não tem. O que fica sem solução é quem detém a verdade sem parênteses para justificar e condenar.
Assim, o movimento questionou, por um lado, a suposta falta de legitimidade da invasão russa, ao ser forçada pelo desenho do Atlântico Norte a “conter” (e se possível, desmantelar) a Rússia. Portanto, a defesa da soberania da Rússia desencadeou a invasão da Ucrânia em defesa da segurança nacional russa ameaçada pelas operações da OTAN programadas para serem efetivadas na Ucrânia, desde o golpe de Estado de 2014, data em que a Rússia anexou a Crimeia.
E, por outro lado, foi uma desconsideração – por parte de ambos os dirigentes – da ordem emitida pelo Tribunal Penal Internacional ao julgar Putin como criminoso de guerra e ter mantido silêncio sobre os crimes de guerra cometidos no Iraque. O fato de o ex-presidente George W. Bush ter declarado, em 2008, que foi um erro ter assumido que Saddam Hussein possuía armas de destruição em massa, não o exime dos crimes cometidos, nem sua declaração convence de que não sabia disso na época da invasão.
O fato de Saddam Hussein não possuir armas de destruição em massa garantiu o sucesso da invasão. A imprensa europeia pode, quer ou deve esquecer essas ligações. A China e a Rússia não esquecem. Durante muito tempo foi assim: quem agride esquece ou finge esquecer, quem sofre a agressão nunca esquece.
Mas isso não é tudo. O Ministério das Relações Exteriores da China publicou o documento “Posição da China sobre a solução política da crise na Ucrânia” datado de 24 de fevereiro de 2023. Ou seja, dia do primeiro aniversário do início da operação militar na Ucrânia. A operação militar especial na Ucrânia, no vocabulário oficial da Rússia (invasão, no vocabulário dos comunicados dos Estados e da imprensa ocidentais), ocorreu 20 dias depois que, em Pequim e antes do início dos Jogos Olímpicos de 2022, Xi Jinping e Vladimir Putin assinassem um acordo inaugurando “a nova era das relações internacionais e do desenvolvimento global sustentável”.
O encontro histórico entre Xi Jinping e Vladimir Putin em Moscou, ignorando os esforços judiciais e da mídia para desacreditar o último e conquistar a simpatia do primeiro, fracassou mais uma vez. Tudo indica que especialmente o governo dos EUA ainda não entendeu que a cooperação entre a China e a Rússia é inalienável e imutável. Também dá a impressão de que o governo dos Estados Unidos se considera o dono da verdade sem parênteses e da justiça divina universal. Essas são consequências “naturais” da hegemonia política unipolar e epistêmica universal.
Tanto a recente mediação da China para restabelecer as relações pacíficas, políticas, econômicas e diplomáticas entre o Irã e a Arábia Saudita, quanto o histórico encontro em Moscou no dia 20 de março, são marcadores inequívocos do irreprimível papel da China na emergente ordem mundial multipolar. Neste ponto, apenas uma conflagração nuclear poderia detê-la. À primeira vista, o significado e os desdobramentos do acordo firmado entre Irã e Arábia Saudita, mediado pela diplomacia chinesa, são enormes. Em primeiro lugar, o simples e firme fato de que a China tomou a iniciativa de promover a cooperação em vez da competição.
Em segundo lugar, o fato nada trivial de os Estados Unidos não terem participado dos diálogos entre Arábia Saudita, Irã e China. Em terceiro lugar, que Israel, agora nas mãos da extrema direita, também não tenha participado e, além disso, que suas relações com a Arábia Saudita para conter a influência do Irã na Ásia Ocidental (Oriente Médio na perspectiva do Ocidente) não mais serem as que foram. O movimento de Xi Jinping limpa o tabuleiro depois do movimento de Joe Biden conectando a Polônia à Ucrânia.
Por outro lado, o acordo implica uma mudança notável da Arábia Saudita – liderada pelo príncipe herdeiro da coroa Mohammed bin Salman – com repercussões na Ásia Ocidental (Oriente Médio). As estreitas relações da Arábia Saudita com os Estados Unidos e Israel tendem a ser substituídas por estreitas relações com a China e o Irã. Entretanto, isso não é tudo. A colaboração da Arábia com a Rússia, ambos membros fortes da OPEP, foi decisiva – e ao mesmo tempo desobediente – diante das ameaças de Biden de punir Riad por diminuir a produção de petróleo, agravando o fechamento do gasoduto que abastecia 40% do gás para a União Europeia. Isso aconteceu antes que o oleoduto Nord Stream 2 fosse sabotado
Mas isso não é tudo. Em 9 de março, um dia antes de o Irã e a Arábia Saudita assinarem o acordo de colaboração mútua em Pequim, o príncipe Faisal bin Farhan Al Saud, ministro das Relações Exteriores saudita, viajou a Moscou para conversar com seu homólogo russo, Serge Lavrov. Anteriormente, a Arábia Saudita havia solicitado, juntamente com a Turquia e o Egito, a sua adesão ao grupo dos BRICS, enquanto o Irã já assinou o memorando da Organização de Cooperação de Xangai.
Chegar a este ponto sem afirmar que os Estados envolvidos são “Estados autoritários” poderia sugerir ao leitor que estou do lado do autoritarismo, o que não está de acordo com a perspectiva decolonial que defendo. Supõe-se que a perspectiva decolonial deveria condenar qualquer autoritarismo e promover a democracia. O problema é que hoje o autoritarismo chinês promove a multipolaridade e a cooperação, enquanto a democracia neoliberal se esforça para preservar a ordem unipolar através da guerra. Isso implica impor uma ordem planetária homogênea no modelo do Atlântico Norte (Estados Unidos, OTAN, União Europeia) mediante sanções e aumento de armas. Enquanto a primeira orientação, liderada pela China, promove a cooperação, a segunda, liderada pelos Estados Unidos, promove a guerra.
De modo que a equação se inverte: enquanto a China administra a paz e a cooperação, os Estados Unidos promovem a guerra. Algo estranho está acontecendo. Não é mais possível entender a mudança dos tempos mantendo a lógica binária da época da mudança: ou você está comigo ou está com meus inimigos. A atitude decolonial neste caso não é nem uma coisa nem outra. Mas isso, dirão, é lavar as mãos e não tomar partido. Não exatamente.
Na verdade, é tomar partido rejeitando a armadilha da lógica binária, desvencilhando-se da lógica hegemônica durante a época de mudanças e começar a entender que os Estados “autoritários” na política interna podem reorientar relações internacionais democráticas, enquanto os Estados “democráticos” na política interna podem promover a guerra nas relações internacionais. Nesta área, a decolonialidade nos convida a rever os pressupostos que justificam a guerra permanente para conter os “eixos do mal” que nos ameaçam. Não cair na armadilha já é tomar partido, além de ser uma atitude saudável e libertadora. Tal atitude nos convida a reconhecer, gostemos ou não, que os Estados “autoritários multipolares” são consequência dos desenhos de homogeneização “democrática unipolar”.
O Wall Street Journal publicou, no dia 11 de maio, um artigo com um título revelador: “Xi Jinping Bring’s China Reform Era to and End” (Xi Jinping põe fim à era das reformas). A colunista Linglei Wei, correspondente chefe do jornal para assuntos relativos à China, destaca o encerramento das cinco décadas de reformas introduzidas por Deng Xiopeng no final dos anos 1970. Ela também enfatiza que os movimentos de Xi Jinping destacam a liderança do Partido Comunista em todos os aspectos da governança. O que marca não só o fim do período de reformas mas, sobretudo, encerra a abertura da China para o Ocidente.
No Ocidente é comum criticar o autoritarismo chinês em contraste com a democracia do “mundo livre”. No entanto, a democracia nas mãos dos Estados imperiais deixou de existir há muito tempo, se é que alguma vez existiu. E, por contágio, em muitos Estados que preservam as heranças coloniais. Para Wei, essa mudança encerra a ordem internacional que conhecemos nas últimas quatro décadas e conclui sugerindo que a mudança de rumo traz consigo a eventual incerteza da ordem global. A incerteza já é notória desde o colapso da União Soviética e o suposto fim da história. A incerteza começou por volta de 2001, muito antes da China mudar radicalmente com o terceiro mandato de Xi Jinping.
O Ministério das Relações Exteriores da República Popular da China – sob a tutela do novo secretário de Relações Exteriores, Qing Gang –, por sua vez, publicou, em fevereiro último, um documento intitulado “A hegemonia dos Estados Unidos e seus perigos”. O documento, tanto analítico quanto descritivo, conclui com estas palavras: “Os Estados e seus governos devem se respeitar e se tratar como iguais. Os Estados com maiores recursos devem se comportar de maneira compatível com seu status e tomar a iniciativa de buscar um novo modelo de relacionamento Estado a Estado caracterizado pelo diálogo e pela parceria, e não pelo confronto (...) A China se opõe a todas as formas de hegemonismo e política de poder, e rejeita a interferência nos assuntos internos de outros países. Os Estados Unidos devem fazer um sério exame de consciência. Devem examinar criticamente o que fizeram, deixar de lado sua arrogância e preconceito e abandonar suas práticas hegemônicas, dominadoras e intimidadoras”.
De repente nos encontramos com um Estado autoritário que propõe relações interestatais harmoniosas e um Estado democrático que promove a guerra. O primeiro tem por trás a lógica cósmica do yin-yang, ao passo que o segundo tem por trás a lógica binária aristotélica transferida para a lógica binária da teologia cristã. O primeiro propõe o diálogo e os acordos de mútuos benefícios (“win-win” é a expressão de Xi Jinping), enquanto o segundo propõe a competição, o conflito e o jogo de soma zero.
O que está em jogo é um processo sem volta, do qual a invasão russa da Ucrânia é outro sinal evidente, “a irresistível mudança do poder global para o Oriente” que o diplomata e historiador de Cingapura Kishore Mahbubani já havia detectado em 2008. No livro, cujo subtítulo acabei de parafrasear, Maharani inclui um significativo capítulo intitulado “Desocidentalização”, que relaciona com a multipolaridade. De minha parte, explorei essa ideia em diversas ocasiões na América Latina. Uma delas foi publicada no Página/12, em dezembro de 2011.
Diversas vezes destaquei a consolidação de Estados desobedientes que deslegitimam a hegemonia moderna/colonial que postula e defende universais abstratos no conhecimento e a unipolaridade político-econômica na ordem global. Com isso, fecham o ciclo de ocidentalização do mundo que durou de 1500 a cerca de 2000. Um exemplo do primeiro caso é a recente declaração do presidente da França, Emanuel Macron, ao justificar a forçada lei da aposentadoria dizendo que a reforma não é um luxo, mas uma necessidade da nação. O universal abstrato“nação” justifica a imposição de uma lei rejeitada por 75% da população. Ao passo que a recusa do Ocidente em dialogar com a proposta da China para mediar a crise ucraniana revela o segundo caso, com o argumento de que a China não é um estado imparcial. Enquanto isso, a China defende que nenhum Estado da OTAN pode mediar a resolução da crise porque não pode ser imparcial.
Subjacente às acusações do Atlântico Norte à China e à Rússia, e vice-versa, que circulam na imprensa e nos comunicados oficiais, o que está em jogo são “cosmologias” (cosmovisões, cosmo-vivências) inconciliáveis, embora entrelaçadas em diferentes momentos dos 500 anos de expansão ocidental; ou seja, de globalização. Cosmologias que regulam o conhecer, o sentir e o agir. O problema e as muitas dificuldades para entender a desocidentalização e a multipolaridade residem no entrelaçamento, já que na lógica do Ocidente tudo se reduz ao binarismo.
A insistência de Xi Jinping no esquema “ganha-ganha” (win-win) não se adéqua ao esquema político ocidental de “soma zero”, segundo o qual alguém tem que ganhar e alguém tem que perder. O esquema “ganha-ganha” é a versão política, econômica e militar do fluxo constante do yin-yang, ao passo que a “soma zero” é a versão político-econômica do binarismo aristotélico do terceiro excluído, materializado pela teologia cristã em seu práticas – justificadas por Santo Tomás de Aquino em sua canônica Suma Teológica.
No entanto, a versão política “ganha-ganha” encontra seu fundamento na complementaridade do yin-yang é paralela à versão política que questiona a suposta universalidade das relações internacionais hegemonizadas pelo Ocidente desde o século XVI. A política de “soma zero” já estava implícita, não anunciada nestes termos, na expansão ocidental, teológica e economicamente mercantilista, a partir de então. O que se desenvolve com a política de “soma zero” é um tecido de poder que consiste na dominação/exploração e opressão/conflito.
Sem dúvida, os conflitos surgiram no século XVI e não deixaram de existir. O que aconteceu nas últimas décadas é que a estrutura de governo conhecida primeiro como Estado monárquico e depois como Estado-nação e a economia de acumulação conhecida como capitalismo (mercantil, industrial, tecnológico) foram dois instrumentos fundamentais de expansão, exploração e opressão. Assim, a forma Estado e a forma econômica do capitalismo foram “apropriadas” e atualizadas em memórias e legados culturais locais de longa data, mas desobedientes aos desígnios expansivos e homogeneizadores do Ocidente.
A posição da China na crise da Ucrânia é a do não se envolver e tomar partido no conflito. O que não significa que a sua posição não seja próxima à da Rússia, pois ambos os Estados entendem que a provocação da OTAN, a serviço dos Estados Unidos e da União Europeia, usando a Ucrânia (com o seu próprio consentimento) para “conter” (se não desmontar) a Rússia provocou a invasão russa. A partir daí, o conflito, cuja resolução não está à vista, consiste na insistência do Atlântico Norte em manter a ordem global unipolar e na negação da China, Rússia e Irã decididamente, da Turquia e da Índia ainda de forma ambígua, e de outros Estados que mantêm uma atitude de não apoio às sanções e de aproximação à irreversível virada política e econômica para o Leste.
No entanto, a cosmologia chinesa é diferente da ocidental, com certeza. Não é oposta. É apenas diferente. A versão oposta é a do Ocidente. E não é a única diferente da cosmologia ocidental. Mas elas estão interligadas desde a Guerra do Ópio. Até meados do século XIX eram cosmologias distintas, mas não binariamente opostas. Como eram também as cosmologias africanas antes de 1652, quando o Ocidente começou a se infiltrar e a acorrentar, negando, o que havia ali. Por isso não deixaram de existir, mas coexistiram como diferença, mas a diferença inventada pelo Ocidente para construir sua mesmidade. E como o foram as civilizações do continente, que para a Europa foi um Novo Mundo.
Assim, desde o século XVI, o Ocidente acorrentou todas as cosmologias coexistentes e as subordinou à sua própria cosmologia. Ou seja, globalizou sua provincial universalidade. O que foi uma conquista. Mas, ao mesmo tempo, promoveu a ressurreição das civilizações acorrentadas. E é isso que está acontecendo hoje com a China, a Rússia e o Irã. Estas, como fez a Europa em seu momento, se apropriaram das conquistas do Ocidente para reconstituir o que o Ocidente destituiu. Não voltar ao passado – é óbvio, quem pensaria nisso senão os críticos pós-modernos –, mas todo o contrário, para reconstituir o passado no presente e, nesse presente reconstituído, lançar as bases para seus futuros.
Não se trata de hibridismo, mas de cosmologias entrelaçadas em diferenciais de poder: as diferenças coloniais e as diferenças imperiais, a segunda montada sobre a primeira. O conflito dos EUA com a China é baseado na diferença imperial. A China nunca sofreu com o colonialismo de assentamento, como a Índia. Mas não escapou da colonialidade, que não necessita de colônias de assentamento. Em vez disso, a Índia sofreu com o diferencial colonial de poder, o que marcou sua dependência da Inglaterra. A Argentina não sofreu colônias francesas e inglesas de assentamento. Mas após a independência da Espanha, a colonialidade a prendeu nas redes políticas, econômicas e intelectuais da Inglaterra e da França.
Por isso, também, a retórica do Partido Comunista Chinês e do governo se apropriou não apenas da economia da acumulação, mas também de sua retórica: o mantra ocidental da modernização. Xi Jinping lançou o modelo “não ocidental de modernização”, que não é uma “modernização alternativa”, mas é alternativa à modernização ocidental. Desde a sua versão secular a partir do século XVII, sob a alcunha de “progresso e civilização”, a modernização ocidental pressupunha que o modelo global era o ocidental (na época liderado pela Inglaterra e pela França) e, portanto, a lógica de “soma zero”.
Ou seja, o progresso e a civilização pressupunham “deixar para trás” a tradição e a barbárie. Domingo Faustino Sarmiento dixit. A modernização proposta pela China, modelada no yin-yang, não deixa para trás nem tenta civilizar ninguém, mas trabalhar conjuntamente para o “ganha-ganha”. Enquanto o modelo ocidental proclama a unipolaridade de sua própria civilização, o modelo chinês proclama a multipolaridade que respeita cada uma das civilizações coexistentes.
Paralelamente à retórica do Partido Comunista e do governo da China, caminha a investigação politológica que questiona a unipolaridade das relações internacionais reguladas pelo Ocidente depois do Tratado de Vestfália e modeladas na forma secular de governo dos Estados nacionais, na tripartição dos poderes e na pluralidade (embora em geral sejam sempre dois) de partidos políticos que disputam, pelo voto, a condução governamental do Estado.
Na variedade de propostas que propõem a atualização dos regulamentos intergovernamentais das tribos ou comunidades na China antiga, Zhao Tingyan, filósofo e teórico das relações internacionais, é uma das vozes mais interessantes e, claro, controversas. Zhao propõe o seguinte: as relações internacionais hoje são modeladas com base no Estado-nação e combinadas com as variantes dos desenhos ocidentais, primeiro eurocêntricos e depois remodelados pelo Atlântico Norte através da criação das Nações Unidas.
As “nações” unidas não podiam ser chamadas de Estados Unidos porque o nome já havia sido adquirido, embora as Nações Unidas fossem um projeto estadunidense que, após a Segunda Guerra Mundial, substituiu a Liga das Nações liderada pelo império britânico. Em outras palavras, as relações internacionais, que na realidade são interestatais, estão sujeitas à sobrevivência da ordem mundial unilateral. Esta é uma das razões pelas quais, recentemente, o Conselho de Segurança das Nações Unidas rejeitou uma proposta russa para investigar a sabotagem do Nord Stream 2, que, segundo o relatório Seymour Hersh, indica os Estados Unidos e Joe Bien como principais projetistas e responsáveis.
A ordem mundial, em caminho avançado rumo à multipolaridade, liderada pela China, não pode mais continuar sob o modelo obsoleto que deu bons resultados durante o processo de ocidentalização do mundo, mas é inválido para a desocidentalização. Ou seja, para os processos de reconstituição de civilizações destituídas pelas regulações internacionais emitidas primeiro pela Europa (Liga das Nações) e depois pelos Estados Unidos (Nações Unidas).
Zhao argumenta que a versão secular das relações internacionais não foi uma criação ex nihilo dos séculos XVIII e XIX, pois tem suas raízes na filosofia política grega (Platão e Aristóteles), na teologia política cristã (Carl Schmitt), no Renascimento europeu (Nicolau Maquiavel na Itália, Francisco de Vitória na Espanha, e Hugo Grotius na Holanda) e no alvorecer do Iluminismo (John Locke). Embora essa honrosa e sólida tradição seja respeitável, já é insustentável para governar a ordem mundial multipolar.
Zhao propõe, ao contrário, traçar as pegadas de Tianxia (Tudo sob o céu), ao invés de fazê-lo a partir da cosmologia grega, da política de Aristóteles e da república de Platão, tradição que se arrasta até nossos dias através dos nomes mencionados no parágrafo anterior. Basicamente, o legado que a tradição chinesa nos deixa para repensar e refazer as relações internacionais hoje é o caminho dos acordos, e não da guerra. Por isso, no clássico A Arte da Guerra (século IV a.C.), Sun Tzu elabora as estratégias da dissuasão diplomática, respaldada, é claro, pela força militar.
Os objetivos são evitar a guerra a todo custo. Além disso, a arte da guerra não se baseia no jogo de “soma zero” (inventado pela teoria dos jogos usada pela Corporação Rank durante a Guerra Fria), mas na complementaridade dos contrários, apoiados pelo yin-yang. A Tianxia pressupõe que tudo o que está sob o céu deve estar em equilíbrio e harmonia, o que não significa que não haja conflitos, mas que não haja guerra. Escusado será dizer que “céu” na cosmogonia chinesa antiga é o equivalente ao “cosmos” grego, pois tudo o que está sob o céu em harmonia é o momento posterior à desordem que no vocabulário grego era o chaos.
Nem tudo anda nos trilhos e as polêmicas não aconteceram e acontecem apenas na China, mas principalmente no Atlântico Norte. Mas há uma diferença, e não é pequena. O debate na China é doméstico sobre relações internacionais. O mal-estar no Atlântico Norte reside no fato de cientistas políticos e filósofos chineses ousarem questionar a hegemonia da ordem mundial, já consagrada há dois séculos e meio. Portanto, os movimentos de Xi Jinping, acompanhados por Vladimir Putin, não pretendem ser desafios ao Ocidente, mas autodefesa e autodeterminação. O confronto da OTAN com a Rússia na Ucrânia, e o avanço da OTAN e dos Estados Unidos em direção a Taiwan, são movimentos para proteger o unilateralismo “ameaçado” pela multipolaridade.
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Os movimentos de Xi Jinping. Rumo à multipolaridade. Artigo de Walter Mignolo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU